quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

ALEA JACTA EST - PARTE III

O DIÁRIO DE AZAZEL – PÁGINAS 1715 – 1717

“Perfeição da Vida Por que prender a vida em conceitos e normas? O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas E não degraus do Ser!”.
Mario Quintana

Olá meu querido Diário, não faça essa cara de zangado, por eu ter passando alguns dias sem te alimentar com as linhas de minha pena e com tinta de sangue, tente entender que às vezes preciso de um tempo só pra mim e por isso não te levei no meio passeio pelo Distrito. Mas sua fome será saciada, deixe-me contar sobre teu corpo pálido algo inusitado.

Meu querido...

Apesar de estarmos a poucos quilômetros das Terras do Marques, as coisas estão andando relativamente muita calmas aqui no Distrito Industrial, sentindo-me um tanto mais a vontade, decidir dá uma volta, não como faço diariamente, cruzando o Distrito de um lado a outro sem reparar de fato em como ele era, aliás, fora o céu sempre cinza pela fumaça e o ar quente e abafado, e os efeito dos gases das indústrias, não tinha de fato observado o lugar - por isso não levei você comigo, pois os augúrios eram favoráveis e não precisaria lançar mão de você em caso de urgência..

Andei e conheci boa parte do Centro e bem ali no centro do Distrito, há uma praça, muito bem cuidada, dividida em duas partes, a primeira parte fica do lado leste -  contendo, quadras de basquete, vôlei e futebol, espaço para skate e patins, um pequeno parque infantil, uma caixa de areia - e a segunda parte fica a oeste – neste lado há  uma bela praça arborizada entre elas, bambuzais e canteiros de flores, cercados por aros em ondas, também há belos bancos de ferro (pintados de prata) e um belos jorros d´água sobem de piso e são iluminados á noite por refletores de cores variadas - e, dividindo as duas partes da Praça, há um posto da Policia Distrital.

Neste local, cercado, por lanchonetes famosas - e não tão famosas – há também, lojas populares e de grifes, templos religiosos, e, e em todos os lados desse retângulo há vias bem esfalfadas e sinalizadas para os veículos sempre em movimento - vi idosos, adultos, jovens e crianças, passeando, conversando, falando dos mais variados assuntos, outros brincavam, jogavam, namoravam e trocavam juras de amor, em fim, ali é um ponto de efervescência social, um ponto de convergência das raças, um lugar de inteiração entre os que sabem e os que guardam o segredo do Pacto ou trazem a marca dos proscritos.

Respirei profundamente - esperando sentir, o fraco  odor de amônia que impregna  todo o Distrito - e para minha surpresa, naquele espaço, ele era totalmente ausente,  ali o ar cheirava levemente a bosques e matas, o ar era totalmente diferente e limpo – vi pequenos roedores e saguis, pássaros e outros pequenos animais  nos nichos de plantas, arvores e flores, o que fazia daquele espaço um local onde a vida era sentida, não fosse pela arquitetura, diria que ali era um pequeno pedaço do Éden.

André – vaso usado, temporariamente, como hospedeiro pelo meu servidor Íncubo - reparou na surpresa que se estampava em meu rosto e no da minha cria humana disse: Vocês não esperavam isso néh? – como que adivinhando minha resposta ele disse: Este Distrito tem seus mistérios – e rimos os três disso.

Realmente eu estava muito surpreso com aquela Praça, tudo era perfeito, perfeito demais – até mesmo para um Distrito Governado pelos Anciões – cujo lema era: ABSQUE ARGENTO OMNIA VANA  (Sem dinheiro, tudo é vão) - aquele lugar estava por demais perfeito - meus instintos me diziam: não fique surpreso e sim preocupado com a perfeição deste lugar, pois ninguém jamais conseguiu manifestar em expressão visível a perfeição de qualquer grau-  mas  perfeição, só é perfeição se não tiver imperfeição alguma, tão certo assim, que logo um pequeno detalhe me atraiu os sentidos.

Contrastando com toda a beleza do lugar, havia um senhor de idade, cabelos e barba totalmente grisalhos, pele negra, rosto marcado pelo sol e pela idade, no pescoço usava algumas guias - que lembravam o culto aos orixás –, um rosário de madeira e uma medalha de São Cipriano, que pendiam até o peito. Sua camisa velha e rasgada mostrava remendos de vários outros retalhos, sua calça, também velha e amarrotada, também continha remendos. No seu lado esquerdo, ao chão, um saco de linhagem sujo - cujo conteúdo não saberia dizer.  Pude ver mãos calejadas – que seguravam um pedaço de pau, que fazia às vezes de cajado. Ele estava sentado no lado norte da praça,  próximo a fonte de água, cercado por pelos menos cinco cães de ruas, com quem dividia, um pouco de resto de comida e água. A cena me deixou em êxtase, pois, sua aparência, apesar de suja, demonstrava altivez e às vezes me fazia lembrar ora daquelas imagens de Preto Velho e oras a imagem de também São Lázaro. Parei a poucos metros dele e observava-o.

André, vendo meu êxtase, disse: Pare de olhar assim, seu Antônio tá aqui há muitos anos, mesmo antes de eu nascer, meu Pai me disse que seu Antônio já era velho no tempo em que era jovem e solteiro e desde aquele tempo do ronca que ele já mendigava aqui, ele pede esmola pra beber. Porra, vamos andar tem muito pra ver ainda.- o vaso do meu Servidor falava, mas eu não conseguia sair dali, não conseguia parar de olhar para seu Antônio.

Seu Antônio estendeu a mão em minha direção e pediu – Moço me dê uma esmolinha pelo amor de Deus, para eu comprar comida pra mim e meus cachorros – Prontamente me aproximei, e acho que influenciado pelo que André tinha dito e falei – É pra comprar comida mesmo né, não é pra comprar cachaça não né? 

Ele fixou seus olhos negros em mim respondeu:
E se fosse? Muito me admira alguém que se diz amoral, me julga justamente, pela moral enraizada na própria Psique?

 – Aquela resposta me pegou de surpresa, não tinha como retrucar. Seu Antonio continuou a me bombardear com perguntas.

Qual é a sua intenção ao me dar a esmola?

Você quer saber se valorizei seu ato de compaixão?

Sua intenção de me ajudar só teria efeito se eu comprasse comida?

O que vale mais seu ato dar é ou o que farei com o que me deu?

O bem que você acha que esta me fazendo só seria real se eu comprasse comida e seu comprasse remédio ou crack?

Qual sua responsabilidade se ao me dar eu comprar uma faca e assassinar alguém, ou então gastar com comida ou droga?

Ou quer de fato ao me dá esmola? Dar por dar ou me converter a sua forma de pensar e cercear minha liberdade de escolher o que fazer com o que tenho ou ganho? Quer me ensinar os bons costumes e a moral vigente?

Fiquei extático e meu corpo não teve outra reação, se não, diante dessas e outras perguntas, sentar-me em frente a ele para escutar.

Ele continuou – pelo visto não te achas Mestre, pois em anos tu és o primeiro que senta-se comigo aqui – logo percebi que sua aparência era uma mascara e respondi – Senhor, sou apenas um buscador, um exilado – ele de pronto retrucou – exilado pela marca e maldição que carrega em teu sangue e pelo prego que quando aquecido te faz ir da floresta ao deserto, e, do deserto ás sombras. Mas já que sentou, ouça-me, as pessoas passam por mim e sentem nojo, sentem pena, e quando me dão algum dinheiro sempre recomendam que compre comida, se não, nunca mais me darão nada, essas mesmas pessoas batem ou enxotam os pequeninos que me acompanham e me protegem, sim, essas criaturas de Deus, estes cães, sujos, fedidos, sarnentos e pulguentos, e fazem isso com a maior naturalidade e depois ainda vão para seus templos realizar seus atos de adoração a seus Deuses. Como conseguem fazer?

Respondi: amo cães, e não os maltrato – Seu Antônio, mais uma vez fixou seus olhos nos meus e como que perscrutando minha alma disse: você trás no sangue a marca, você é considerado por eles como um parente deles, e só luta contra os seus parentes pela própria vida ou para proteger a Matilha  – minhas percepções se confirmaram, que não estava diante de um humano.

Seu Antônio, então fez uma pausa, afagou cada um a um os vira-latas, que lhe retribuiu com lambidas e continuou: Sabe porque as pessoas agem assim? – respondi: não.

Seu Antônio então me respondeu: Porque agem a semelhança dos deuses que servem, eles não conhecem o Sagrado a não ser através da escravidão do credo e da moral, o que erroneamente chamam deuses ou deus e que servem, é uma coisa aterradora, exige adoração, submissão, temor, e obediência total, exige que matem os que não adorarem como  manda o credo ou fé. Que ser este? É Deus? Como pode um “Ser Supremo”, Auto-Suficiente, Absoluto, imutável, transcendente, ser pior em sentimentos e exigências que a mais baixa de suas criaturas consciente? Um ser que se diz Supremo e se alimenta do temor não pode ser Chamado de Deus.. Deus é muito maior, Deus é amor, e essas pessoas tem falta de amor, e isso é um grau de imbecilidade, porque o amor é a perfeição da consciência.

Seu Antonio parou e abriu o saco de linhagem e tirou de lá uma garrafa plástica contendo um líquido avermelhado, que julguei ser vinho, em seguida um pacote de fumo, e um pequeno maço de papéis, fez dois cigarros, verteu parte do líquido numa caneca de alumínio sem brilho e desgastada, tomou um gole e me ofereceu, e sorvir ainda admirado pelo que ouvia, acendeu um cigarro e me passou e em seguida acendeu o dele e fumamos e bebemos por alguns minutos.

As pessoas passavam e achavam a cena bizarra e eu não estava nem um pouco incomodado  

Seu Antonio prosseguiu -  Elohim disse, “façamos o homem, ó Querubins, conforme a nossa imagem e semelhança” e o homem disse para que possamos dominar é preciso que Deus seja a nossa semelhança e não nós a dele, assim, eles criaram a  religião.

Então – disse eu e continuei – pode ser que a arrogância humana, tenham mudado  a imagem do Deus Infinito, em semelhança de si mesmo, impondo aos demais pela força e pelas armas, o deus finito ?

Em resposta seu Antônio disse: o homem criador da religião adaptou  - a bel prazer de suas conveniências  e desejos de dominar ao próximo - o Imutável em suas frustrações temporais, o Intemporal foi mudado no credo para o temporal, e para resgatar a humanidade para o ponto original, para o centro da Encruzilhada  o Primeiro-Raio-Luz- caiu na carne, no meio do Éden, e ali nasceu Caim, o raio que tocou a terra, o martelo que bateu na bigorna, e pelo sacrifício de Abel, ele quis re-velar aos humanos a tocha sobre a cabeça do Pai-Bode, o Espírito que é Fogo e Luz, que é Deus-Dentro-Si, quem se é, qual a sua origem e qual é o seu destino, ele quis apontar a direção ao Paraíso perdido. Mas, a moral e bons costumes, o exilaram e ele perambulou pelas terras desérticas da solidão.

Seu Antonio repetiu os gestos do cigarro e vinho e os dividiu comigo, partilhou pedaços de pão francês entre os cinco cães que comeram felizes o pouco que tinham, e continuou:  Ele retornou novamente e ensinava ao povo que Deus não era o “Senhor da Guerra e dos castigos, sedento por sangue e vingança”, mas era Abba, O “Pai Supremo” de seus filhos pródigos e novamente foi sacrificado.

Ninguém entendia nada - André e a minha cria humana ficaram de longe - todos passavam e viam admirados: um mendigo e homem bem vestido sentados no chão de ladrilhos da Praça Central do Distrito – os que sabiam e os guardavam o Pacto não estavam imunes ao fato, sabiam o que se passava ali -, sorvendo goles de vinho de terceira categoria, fumando cigarros de feito com fumo e papel. E eu via diante de mim, um Espírito Guardião, um Sábio.. Levamos horas ali falamos sobre ..... Deus é muito mais do que possamos imaginar, muito mais do que queremos que fosse... até que ele me disse: vá agora, está ficando tarde – Chegando em casa, peguei você para escrever meu Pequeno Magistellus e cá estamos nós – ALEA JACTA EST.

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P.S:  O texto é composto de mentiras símeis aos fatos... “e dizer mentiras símeis aos fatos é furtá-los à luz, encobrí-los. As mentiras são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos como manifestação do que os encombre " ele, revela assim, similitude que se oculta na verdade e na mentira no estreito caminho entre o cinismo e a ingenuidade.....