A QUEDA - PARTE II
"O segredo não é ver o que ninguém viu mas sim enxergar de
forma diferente o que todo mundo vê " Arthur
Schopenhauer.
Em
todos estes anos de práticas de feitiçaria, jamais um caminho foi tão cheio de
ordálias quanto a Quimbanda. Mas, antes de começar, peço aos quimbandeiros, que
não vejam estas linhas como ensino, doutrina ou orientação, ou seja, não irei
aqui discorrer sobre fundamentos e práticas de Quimbanda, para isso já existem
para além de centenas de cursos –
alguns ruins, outros mais ou menos e um ou outro raros e bons – nem
tão pouco falaremos de literatura sobre este caminho, até porque, a meu ver, as
melhores obras sobre Quimbanda até a presente data são os livros do Danilo Coppini [1], que valem cada centavo pago sem choro.
Mas, todavia, peço que vejam estas linhas sob e sobre a ótica da perspectiva de
vivência pessoal de quem escreve.
Quando
conheci o caminho do culto ancestral, o caminho de veneração e pacto com os
mortos poderosos – Exus e Pombagiras – não foi como cliente, e sim, como
iniciante na prática, confesso que fiquei deslumbrado, encantado, cheio de
sonhos. Imaginava que meus ancestrais abririam todas as portas e caminhos de
realização.
Eu
já vinha de uma linha de Bruxaria e filosofia Luciferiana[2]
cujo objetivo primal é o da mão esquerda e o da autodeificação[3],
tendo Caim (ou Qaiynn) que, ao passar por toda narrativa descrita no livro “The Book Of Cain” de Michael W. Ford[4]
é o exemplo e patrono da autotransformação. E na minha opinião e somente
nela, a Quimbanda é um sistema Antinômico[5]
pois se opõe ferozmente ao sistema estabelecido da cristandade como sendo bom e
perfeito para a humanidade. Neste sistema estabelecido pelo Demiurgo[6]”
é excluída a liberdade do ser humano de pensar por si só, de se ver como ele é de verdade, porém, dando-lhes em substituição “a liberdade” um falso conceito de
livre arbítrio baseado na dicotomia deus x diabo, ou seja, aquilo que o sistema
demiurgo diz ser bom é de Deus e o que ele afirma ser mal é do Diabo.
Voltando
ao cerne, realizei os atos, alimentei meus antepassados, vi resultados
acontecendo na vida dos outros pela minha intercessão junto aos mortos
poderosos. Houve avisos de perigo e a vida de alguém foi salva, pedidos de
emprego e amores foram realizados para outros. E, depois de acontecerem, jamais
voltaram para agradecer ou para trazer um mísero cigarro como forma de
gratidão.
Enquanto
isso acontecia e acontece para os outros, em relação a mim, tudo de bom
esvaiu-se de minha vida como água escorrendo entre os dedos: emprego, dinheiro,
amores, amizades, ia sumindo e todos se afastando. Jamais imaginaria que todo o
meu entusiasmo, diferente dos ditos clientes cujos pedidos são realizados
rapidamente, se exauriria rapidamente por causa das ordálias[7].
Como diz o ditado popular, "Quanto
maior a altura, maior a queda" e queira meu leitor
traduzir a palavra altura no texto por entusiasmo.
O
que eu sei é que cai literalmente no fundo do poço, sem amigos, sem amores, sem
casa própria – pagando
aluguel caríssimo - recebendo metade do que ganhava. Entrei numa
crise existencial, nada mais fazendo sentido, pensei em largar tudo, sumir no
mundo, despachar assentamentos e viver agnosticamente[8],
assumir meu destino de solidão.
Fiquei
sozinho, desolado. Mas não deixei de alimentar meus Exus e Pombagiras, com
fluido vital, carnes, frutas, padês e toda espécie de alimentos, agrados,
preces e oferendas. Pedia uma direção, uma orientação aos meus Guardiões e
Ancestrais e nada, clamava por caminhos abertos - não importava se desse um bonde ou um frango, um bife
acebolado, ou um gym - nada fluía, a resposta era sempre nada,
conjuntamente, com a estagnação e as perdas. Via-me cada vez mais cair do alto
das minhas crenças para o fundo do poço.
Às
vezes batia e ainda bate o desespero, a solidão, o arrependimento. Isso sem
falar da ansiedade e das crises de depressão. Nesses momentos cruciais, me vêm
à mente as palavras de uma Sacerdotisa e Dama de um Convetículo Tradicional que
dizia: “o Caminho da feitiçaria te levará à
loucura, solidão ou morte, esteja pronto para dialogar com o Diabo e debater
com Satã”.
Eu
me questionava aos Mortos Poderosos, por que não tenho respostas positivas:
será por ter sido um canal gratuito a pedidos e desejos de outros, já que a
regra básica é primeiro dar e depois barganhar? Em outras palavras, eu não
exigia pagamento, mesmo que fosse em forma de bebida e cigarros. Fazia por
caridade. Talvez a resposta já esteja aí nessas linhas acima, ou mais abaixo,
e/ou eu jamais saiba o motivo.
Mas
Nosso Senhor o Diabo, me fez lembrar que ele mesmo disse: “cair por amor - e amor é troca -
trocamos nossa forma de luz e fogo em energia bruta e caímos no inferno
instintual do homem e habitamos no subconsciente do barro, para que de dentro
para fora pudéssemos reacender a chama negra e o ser criado pudesse buscar a
autodeificação[9]”
Então
percebi que aquilo que chamamos de fundo do poço, na realidade, é o cair das
máscaras. Acontece que, quando nós não as tiramos por vontade própria, Exu e
Pombagira, as arrancam e nos desnudam. Aqui é a pior parte, pois ao retirar ou
ao ter as máscaras demiurgas arrancadas, nos vemos como somos de verdade, e não
como pensávamos que éramos. A verdade sobre nós mesmos é mostrada: nossas
fraquezas, medos, decepções, depressões, ansiedade, traumas, erros, acertos,
escolhas, nossas taras, nossa personalidade real, tudo aquilo que podemos
chamar de nossos demônios internos, nossos desejos mais ocultos e sombrios, os
quais simbolizamos em Satã, se mostram a nós e escancaram e atravessam os
portais do inferno para morar ao nosso lado e em nossa vida e não se refletem
em espelhos e sim diante de nós e em nós mesmos.
A
quimbanda também nos faz ver que as máscaras dos que nos cercam, daqueles que
habitam nosso micro universo, também são arrancadas e vemos de fato o que
significamos ou significávamos para eles.
De
repente, aquela (s) pessoa (s) que achávamos, quando ainda sob o véu da ilusão,
era nossa amiga, não passava de alguém interesseiro naquilo que você podia
proporcionar e, quando o suprimento acaba, e você precisou dela (ou delas), não
encontrou apoio, abraço ou conforto. Elas sumiram, te abandonaram, te deixaram
sozinho no fundo do poço.
Até
mesmo sua própria família de sangue se mostrou para você como era e o
que de fato sentem por você ou as mantêm ligadas a você. Isso nos causa uma
disforia[10],
um choque brutal, pois a realidade que pensávamos ser de fato a nossa não
passava de mera ilusão.
No
entanto, hoje baixada a poeira, percebo que o que me conforta é que “a queda
que me leva para baixo, para o fundo do poço, como uma raiz que toca o fundo da
terra, é aquela que de fato retirou a máscara da autoilusão minha e do outro.
Tenho apenas duas opções: continuar me vitimizando e olhando para cima, ou
cavar mais fundo até tocar os ossos dos meus antepassados, dos Mortos
Poderosos, em outras palavras, aprender com a queda e me erguer um homem de
fogo,
Por Jayhr
_________________________________________
O texto
é uma ficção e como tal ele diz mentiras símeis aos
fatos, “e dizer mentiras símeis aos fatos é furtá-los à luz, encobri-los.
As mentiras são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos como
manifestação do que os encobre " ele, revela assim, similitude que
se oculta na verdade e na mentira no estreito caminho entre o cinismo e a
ingenuidade...
___________________________________________________________________
[1] https://casadepantera.com.br/cursos/
[2]Que fique claro que não pertenço a linha de Quimbanda Luciferiana.
[3]É a negação ou a redução da importância da lei moral de Deus, a partir do foco ou mapa de uma crença instituída. Portanto, é a máscara e transgressão; e o Caminho da Mão Esquerda. Especificamente, é o Antinomianiano (não-união ou isolamento a partir da ordem natural) caminho de autodeificação (ou encontrar Deus dentro de mim). Por esta definição, as visões individuais dele ou seu Self Único são capazes de confiar somente em seu desenvolvimento psíquico para as criações de conforto, dos desafios e da responsabilidade de invocar a mudança positiva. Moderação também é por certo fator de sucesso. É fácil abusar dos Presentes do Diabo quando ele os apresenta; e é até mais fácil de criar eventuais situações para sua autodestruição, por ações que agora o prendem. Portanto, pense muito antes de suas ações. (Michael W. Ford em “VOX SABBATUM - O SABAT DAS BRUXAS - Tradução livre e adaptada para o português do Brasil, por: Azazel Semjaza Qayinn Lvnae (Gael).
[4]Tradução livre e adaptada para o português do Brasil, por: Azazel Semjaza Qayinn Lvnae (Gael).
[5] Antinômico é um adjetivo que significa oposto, contraditório ou relativo a antinomia. Antinomia é a afirmação simultânea de duas proposições que se contradizem.
[6] No sentido figurado, demiurgo é aquele que se passa como sendo o criador.
[7]A palavra ordália no texto significa uma situação que envolve grandes sofrimentos.
[8] De agnóstico - pessoa que não tem religião ou crença em nada,.
[9] Fonte: https://azazelsemjaza.blogspot.com/2024/11/a-queda-parte-i-que-me-condenas-filhos.html
[10] Disforia é um estado emocional de mal-estar, angústia, tristeza, irritabilidade ou insatisfação extrema. A palavra vem do grego dusforía, que significa "mal-estar" ou "desconforto".
.
16 comentários:
Interessante o conhecimentos
Excelente 👏
Mais uma vez dou-lhe os parabéns pela escrita e de igual modo pelo prazer de poder ler. Confesso que me perdi ao longo da leitura pela vasta referência contida na narrativa. Contudo, não dificultou a fluidez,apenas retardou ou pouco a conclusão. Se eu tivesse coração teria sentido e compartilhado todas as dores e desilusões da personagem, mas isso já é filosofia barata de bar. Obrigado pela leitura gostosa proporcionada por você.
Excelente, parabéns
O conhecimento que vc tem e muito sensacional
O conhecimento que vc tem e muito sensacional
E como chorei, senhores... Senti uma conexão profunda com a leitura, me prendeu do início ao fim.
Essa jornada de enfrentamento interno, muitas vezes árida e solitária, é uma trilha sem volta, Jayhr. É no fundo do poço que lidamos com nossas sombras, sem as ilusões que um dia nos serviram.
Doi muito, mas concordo plenamente que, diante dessa realidade, a segunda opção - cavar mais fundo, tocar o submundo, aprender com os mortos e ressurgir - é a única escolha digna. A Quimbanda, com suas lições duras e implacáveis, nos mostra que o enfrentamento das sombras não é punição, mas transformação pela construção um "eu" autêntico, forjado no fogo e na dor.
Obrigada por compartilhar um pedaço de sua caminhada, me serviu como um espelho e para outras reflexões
Ótima leitura , esclarecimento e conhecimento e tudo, parabéns e muito obrigado pela lição de vida .
👏👏👏👏👏👏 excelente leitura
Estava ansiosa pela parte II e valeu a pena esperar por esse texto incrível! Me emocionei em alguns trechos por saber exatamente o que você estava falando, é no fundo do poço, com a vida revirada do avesso que estou me achando... entendendo quem eu realmente sou e vendo quem realmente eu posso confiar. Obrigada por cada palavra!
Sigamos firme cavando mais fundo, a saída está na lápide sepultura dos mortos poderosos. JA VENCEMOS...
Sábias palavras, excelente leitura e muito aprendizado nesse texto.
"Embora eu siga uma tradição diferente, como católico, consigo reconhecer a profundidade das reflexões no texto. A 'queda' descrita parece ser um momento crucial de autoconhecimento, onde a perda das ilusões permite enxergar a realidade nua e crua, tanto interna quanto externa. Concordo que é nesse ponto de ruptura que se decide como reconstruir-se, definindo os próximos passos.
Vejo a liberdade como uma luta constante contra a alienação, tanto de influências externas quanto das nossas próprias ilusões. Nesse sentido, sua experiência me lembrou o livro Mais Esperto que o Diabo, de Napoleon Hill, que aborda como enfrentamos nossos medos e desejos mais profundos para conquistar liberdade e crescimento pessoal. A queda, embora dolorosa, pode ser o início de uma transformação significativa."
Excelente texto novos aprendizados, embora eu seguir outra religião, como Evangélico mas tiver novos conhecimentos novas visão e em enxergar a realidade em um texto. Excelente
Leitura interessante, com linguagem de fácil entendimento, compreende conhecimentos importantes e proporciona varias reflexões (não só da temática mas, para além disso) . Parabéns!
Que texto! Fluido, conciso, cirúrgico. Foi feito pra mim? As vezes tenho essa sensação...rsrsrs...de que você me conhece um pouco, a ponto de escrever inspirado em minha história de vida. Mas Exu é sobre isso, autoconhecimento, perda da ingenuidade, autoestima, descobertas mil. Pombagira é sobre isso, ter amor próprio e acordar para a realidade, sair de um mundo de sonhos povoado por gente escrota e inescrupulosa. É ser malandro pra não ser mané! Ter a malícia de Seu Zé! E acima de tudo sermos gratos por não estarmos sozinhos, na verdade nunca estivemos. A solitude é um aprendizado necessário. Laroyê!
Postar um comentário